"Hoje tem jogo do Botafogo..."
E isso poderia ser algo péssimo para quem convivia comigo (eu não sei porque conjuguei no passado).
Eu fui uma criança birrenta. Estupidamente birrenta.
Não sei em qual momento da minha vida pronunciei pela primeira vez as palavras “sou Botafogo”, mas eu imagino que tenha sido algo perto de 1994. Bom, foi antes, com certeza.
Eu assisti à Copa do Mundo daquele ano já sendo Botafogo. Não cravo isso por causa da copa, mas por outro episódio.
Naquele ano, o time da minha cidade, Linhares (cidade e time são xarás) passava por um ótimo momento no futebol.
E não é um ótimo momento para o futebol do Espirito Santo. Também. Mas era um ótimo momento para o cenário nacional porque o time lá do Norte Capixaba chegou às semifinais da Copa do Brasil daquele ano - vencida pelo Grêmio.
Um terceiro lugar na classificação geral, eliminando, inclusive, o Fluminense.
Em 1994 era um ótimo momento para ir ao Estádio Guilherme Augusto de Carvalho, “Guilhermão”, ver o time local jogar. Não para mim, estupidamente birrento e que já havia dito as palavras “sou Botafogo”.
Ir ao estádio ver o time jogar era um programa familiar porque a casa dos meus avós paternos era exatamente atrás do estádio - uma bola do jogo, inclusive, já havia caído no quintal uma vez.
Juntava primos, primas, tios e isso tudo era um inferno pra mim. Porque era estupidamente birrento e já sacramentava: “sou Botafogo”.
Bom, e daí?
Houve um jogo do Linhares domingo às 16h. E domingo 16h podia ser um dia de jogo do Botafogo. E em um desses dias era jogo do Botafogo. Televisionado.
Acho que quem viveu os anos 90 sabe que naquela época TV a cabo era coisa de gente com grana. Internet era uma palavra que eu não havia dito ainda porque nunca ouvira falar.
Jogo televisionado do Botafogo era um evento porque eu não conseguia assistir em qualquer outro lugar. Alguns anos depois eu comecei a frequentar bar montando numa bicicleta para ver pela TV a Cabo. Mas em 1994, não.
Fui com meu pai e talvez tios, primos e meu irmão com meio metro de bico para fora. Devo ter feito um inferno de pirraça no Guilhermão naquela tarde.
Era jogo do Botafogo e o Glorioso era o meu grande amor.
Isso tudo está na minha memória por mais que eu não lembre se foi mesmo em 1994, mas acho que sim. Não lembro qual era o jogo do Linhares, tampouco o do Botafogo.
Mas eu fiquei perturbado. Com certeza um tio me falou que eu não ia mais na casa dele. Meu primos, mais velhos, prometeram nunca mais brincar comigo.
E se tudo isso fosse num dia de jogo do Botafogo, tudo bem, porque preferiria ficar em casa mesmo.
Ou seja, eu não era só estupidamente birrento. Eu era insuportavelmente birrento.
Eu acho que melhorei com o passar do tempo. Talvez não pensei igual minha mãe, que sempre sentia na pele as derrotas do Botafogo. Em 1995 eu fiquei deveras feliz, afinal, o time venceu o Campeonato Brasileiro daquele ano.
Mas depois disso…
Depois disso eu ficava ainda estupidamente birrento trancado em casa por causa de derrotas recorrentes do time. Deixava de ir à rua brincar porque não queria ninguém me provocando.
Ficava de mau humor. Deve ter ficado insuportável em 1999 quando perdemos a Copa do Brasil para o Juventude.
Anos depois, mais adulto, cheguei na casa da minha mãe - já não morava com ela - com um rombo na sola do pé. Estava cortado porque pisei em algo que cortava ao comemorar um gol pra provocar a torcida do rival de vermelho e preto que assistia a partida em um bar em frente a minha casa.
Minha mãe viu meu pé e não conteve a tristeza: “Mas Kael, o Botafogo perdeu”.
Perdeu mesmo, de virada, a final do campeonato carioca daquele ano. Em troca, ganhei 5 dias de atestado médico por conta do corte no pé.
O fatídico gol que me fez cortar o pé.
Os anos passaram mais um cado. Mudei de cidade, de estado, mudei de vida e talvez esteja menos estúpido nas derrotas. Até porque, em 2024, o Botafogo me deu a maior alegria da vida ao vê-lo campeão da Libertadores da América.
Poderia contar da vez que quebrei uma cama pulando nela com a vitória do Botafogo que deu o título da Série B de 2015.
Mas é história demais.
Sei que o Kael estupidamente birrento um dia verá, daqui há pouco, o time estreando a Copa do Mundo de Clubes da FIFA.
Talvez o Kael que fazia bico indo ver o time local jogar no estádio pudesse acreditar nisso. O Kael que cortou o pé numa final de carioca em que saiu derrotado, não.
Aliás, sendo bem sincero, o Kael de 2023 não acreditaria nisso. O Kael de 2021 muito menos.
E em horas haverá essa estreia. Em todo dia de jogo do Botafogo eu cantarolo a canção da torcida dos estádios:
“Hoje tem jogo/do Botafogo/ o Glorioso/ é o meu grande amor…”
Em algum momento hoje eu cantei essa música. Apreensivo e ao mesmo tempo em êxtase por ver isso.
Não sei como esse torneio terminará. Talvez eu me chateie. Acho que não, porque é um grupo assumidamente difícil. É aceitar.
O que me anima nesse processo de mudança de alguém estupidamente birrento e insuportavelmente birrento pra quem convivia comigo é que eu estava em um cômodo da casa hoje. De um outro ponto do apartamento, a voz feminina da minha bb cantava
“Hoje tem jogo/do Botafogo…”
Ela não vê os jogos comigo. Mas convive comigo e isso é sinal, ao menos pra mim, de progresso.
Bom.
Pelo menos espero.